quarta-feira, 9 de junho de 2010

Mania de Dodói

Teve gripe suína

Overdose de cocaína

Tem dez litros de insulina

Só por precaução


Penicilina

Ela tomou como vacina

Desde que era pequenina

Já sofre do coração


Até passou

Numa sessão de exorcismo

Fez despacho e deu o dízimo

Pra manter o corpo são


E toma banho de sal grosso

Com um terço no pescoço

Ainda pede, pro Doutor, uma oração.


E dói o dente

Dói barriga, dói ouvido

Também teve aquele ouriço

Que pisou e ainda dói no pé


Dói a cabeça

O corpo todo fodido

Toma outro comprimido

Pra uma dor que não sabe qual é


E uma pontada

Do joelho até o umbigo

É o rim ou é o "figo"

Ou uma coisa qualquer


E toma banho de sal grosso

Com o terço no pescoço

Ainda diz para o Doutor que não tem fé.


(Yussef Kalume)

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Presente de grego






Com as asas que foi de Ícaro

Presenteou-me o Sol

Presente de grego esse

Serviu-me por isca num anzol


Me lancei daquele pico

Nem mesmo comprei gelol

Só faltou nascer-me bico

E cantar igual a rouxinol


Voei como não voam os frangos

Crente de que era alguém

Alguns gritavam: é um anjo!

Outros diziam amém


Senti-me um poeta romântico

Um condor aventureiro

Sobrevoei o Oceano Atlântico

Sobrevoei quase o mundo inteiro


Até que me fisgou o anzol

Ao notar que era um dia quente

Resolvi voar até o sol

Agradecer pelo tal presente


E não foi por vaidade

Que resolvi voar tão alto

Valorizo a amizade

Só queria mostrar-me grato


Mas o Sol incomodado

Por querer chegar tão perto

Pensou que eu fosse abaná-lo

Querendo ser mais esperto


E mandou um calor danado

Muitos raios de uma só vez

O que me mantinha colado

Com o calor, logo se desfez


Pensei: “Esse sol é ridículo!”

E quer repetir a história

O mesmo que fez a Ícaro

Quer fazer comigo agora


Pensa rápido! Pensa rápido!

Pensa rápido! Pensa agora!

Agarrei, do sol, alguns raios

Trancei e fiz deles corda


Vou subir e apagar esse sádico

Metido a astro e fanfarrão

Vou vingar todo solo árido

Que castiga o meu sertão


O sol já beirava o Mar

Encarnando o oceano

Tentei convencê-lo a nadar

Foi aí que tive outro plano


Vou mijar nesse sol safado

Apagar o seu fogo, espero

Mijei e saí dele a nado

Deixando o sol amarelo.


(Yussef Kalume)

Bota outro som

Bota outro som

Que o ouvido aceite

Muda pra outro Tom

Jobim, Tom Zé, Tom Waits


Bota algo de bom

Pode ser Miles Davis

Pode ser Rolling Stones

Ou até Dire Straits


Preciso ouvir Cartola

Bota aí Caetano

Paulinho da Viola

Ou os Novos Baianos


Nada de som da moda

Só porque tão escutando

Que toca toda hora

E toca em todo canto


Só não me peça pra ouvir o rádio

Não agüento mais o tema da novela

Não quero ir a show que lota estádio

Põe Rita Lee, Bethânia e Cássia Eller


Quero ouvir Torquato

Por Elis Regina

Ou uma do Zé Geraldo

Que lembra o Bob Dylan


Quero o som que vem do mato

E música Caipira

Quero Secos e Molhados

Rodrix, Sá e Guarabyra


Mas tira dessa coisa chata

Muda pra outra estação

Busca uma rádio pirata

Que toca o que nas outras não


Renova-me, Tropicália

Mistura o Maracatu

Quero sorrir com a Martinália

Gritar no fim: “Toca Raul!”


Só não me peça pra ouvir o rádio

Não agüento mais o tema da novela

Não quero ir a show que lota estádio

Põe Rita Lee, Bethânia e Cássia Eller


(Yussef Kalume)

Bloco da Pipoca












“Quem tem uns mil e quinhentos

Todo ano pra pagar

E apagar outros quinhentos

Que a história não quer contar”


Eu vou é sair no bloco da pipoca

Com o irmão do quilombo

O irmão da favela

E o irmão da maloca (2x)


Atrás do trio elétrico

Só não vai quem já morreu

Hoje parece patético

Peça antiga de museu


Nos cordões do bloco andando

Só não vai quem não tem grana

Carnaval não é pra baiano

Carnaval é pra bacana


Eu vou é sair no bloco da pipoca

Com o irmão do quilombo

O irmão da favela

E o irmão da maloca (2x)


A corda que nos separa

Que faz distinção do povo

Prendeu o escravo à vara

E quer prendê-lo de novo


Carnaval é para todos

Carnaval não é curral

Curral é pra vaca e touro

Cordão bom tá no varal


Eu vou é sair no bloco da pipoca

Com o irmão do quilombo

O irmão da favela

E o irmão da maloca (2x)


(Yussef Kalume)

Uma história collorida





Essa é a história

De um rapaz meio sabido

Que metido a bandido

Foi parar no xilindró


E quando todos

Pareciam ter esquecido

O rapaz já mais crescido

Retornou pra Maceió


Moço distinto

Cercado pelos amigos

E até que bem vestido

Trajando seu paletó


Diz que mudou

E que ta arrependido

Que conheceu a Jesus Cristo

E deixou de cheirar pó


E esse moço

Tava no fundo do poço

Todos queriam seu pescoço

Um perdido, um Zé Ninguém


Era um grosso

Coberto por pele e osso

Hoje anda até cheiroso

Com um falar um tanto zen


As menininhas

Chamam ele de gostoso

Homem fino, de bom gosto

E que trepa muito bem


Todas querem

Que ele seja seu esposo

Os pais se oferecem a sogro

E oferecem a mãe também


Mas as beatas

Vendo ele de gravata

Dizem que isso é tudo farsa

Pra pousar de bom senhor


Pelas calçadas

Dizem que é psicopata

E que rouba e ainda mata

Como fez ao promotor


Achando graça

Ele no banco da praça

Lê jornal e estica as asas

Com uma pinta de doutor


A condução que espera

Hoje, não atrasa

Nove e meia, em ponto, passa

E ele paga o cobrador


Volta pra casa

Um tanto que convencido

Que pra ser um bom bandido

Tem que ser bom cidadão


Decidido

Resolveu virar político

Apelou pro lado místico

Tudo que é religião


Virou até síndico

E apertou mão de mendigo

Com um sorriso um tanto cínico

Pra ganhar na eleição


É preferível

Assim, tá imune ao presídio

Pois, como é, desde o princípio

Pro poder não há prisão

(Yussef Kalume)

Por costume








Fumou um Plaza

Pensando que era Malboro


E achou gostoso (2X)


Deu um tapinha

Achou que era fumo de rolo


E foi gostoso (2x)


Bebeu cachaça

Crendo que era Ballantines


E achou demais (2X)


E confundiu o noivo

Com outro rapaz


E foi demais (2x)


Vegetariana

Usa casaco de couro


E não come o touro (2X)


Fumou de novo

Achou que era folha de boldo


E era boldo (2X)


Foi a Miami

Mas não foi ao Paraguai


E achou demais (2x)


Podia ser Uruguaiana

Ou Shoptime


Pois tanto faz (2X)


(Yussef Kalume)

Papas na língua.

Na língua há um papa

Um papa que prega

A língua pregada não fala


Sem papas na língua

Não poupa palavras

Já a língua empapada engasga


Solta o verbo, Nem!

Solta o verbo, Nem!


Pois “nem” tem direito

De responder à altura

Sem medo, sem trava e censura.


E “nem” tem direito

De responder à altura

Sem freio, sem tapa e sem dura.


(Yussef Kalume)

Ode ao Nada

Olho um quadro e me impressiono com a parede

Vejo a noite e admiro a luz do poste

Diz te amo, mas espero que me mostre

A saída, pois estou com muita sede


Vou beber água na casa aqui da frente

Busco algo, porém nem sei mesmo aonde

Vou a nado para evitar andar na ponte

Volto andando pra ver tudo diferente


Não há nada que eu ainda queira tanto

É tudo igual, assim prefiro o esquecimento

Corro rápido pra sentir no rosto o vento

Grito e vejo se ainda me espanto


Não há nada a acrescentar neste meu canto

Não há nada pra dizer, por isso penso

Mas o nada me parece tão imenso

De tentar chegar a nada eu me canso


(Yussef Kalume)

O ventre de Tamara

O ventre de Tamara já tem nome
O ventre ainda só não tem uma cara
Cauê será, acaso nasça homem
Se for mulher, então será Moara

O tempo de Tamara a consome
Enquanto o tempo passa, se prepara
Há quem com o próprio ventre se assombre
Há quem diante o medo nunca pára

E o medo de Tamara nunca some
Porém, seu medo não lhe atrapalha
Sozinha, o seu ventre ela assume
Na lei do Ventre Livre, não se casa

(Yussef Kalume)

O que não sigo

Eu louvo o que não vejo

Um pouco de mim mesmo

Eu corro pros teus beijos

E morro num solfejo


Tão louco, te desejo

Qual árvore e relampejo

Sufoco de vez meus medos

E afogo, em ti, meus dedos


E busco o que não sinto

Qual mudo jogando bingo

Sou bruto quando não minto

Tão brusco enquanto brinco


E tento um novo disparo

Acerto o que não miro

Viro-me pro outro lado

Me amparo num ombro amigo


E brigo, mas não me calo

E saio buscando abrigo

Não sigo mais o meu falo

Mas falo o que não sigo


(Yussef Kalume)

O que foi e ficou

É chato

Mas estou farto já são cinco da manhã

Assim me guardo de deitar em um divã

Lembrando que, na cama, a noite rendeu tanto


E parto

Engulo o pranto e fujo à tua indiferença

Sofro em pensar que, ontem, amou-me em reticências

Mas com desfecho tão ruim


Mentira

Toda palavra de amor que disse ao vento

Toda ternura que doou prum só momento

E recolheu logo no fim


Ficou

Somente a cama e a mancha branca no lençol

E um lacinho que soltou do baby doll

Num tom vermelho carmesim


(Yussef Kalume)

O lençol do fantasma

O incomodo gera a dúvida

E a dúvida busca um chão

Por que não buscar nas alturas

Uma nova interrogação?


Assim como o vento forte

Apaga o fogo ou aviva a brasa

A Arte é o lençol que cobre

E torna visível o fantasma


A Arte não é só cultura

Não posso prendê-la em casa

É a pintura ou a moldura?

Ou aquela morena que passa?


A Arte não é o resultado

A Arte é, sim, o processo

Nem sempre há arte num quadro

Nem sempre há arte num verso


Às vezes, dá tudo errado

Às vezes, dá tudo certo

Talvez, eu deixe de lado

Talvez, eu faça o inverso


(Yussef Kalume)

Gentileza inda gera Beleza

Gentileza gera Gentileza

O profeta pintou e falou

Hoje é estampa de camiseta

Disputa lugar com o Redentor


Gentileza por Gentileza

Uma camiseta, por favor

Gentileza inda gera beleza

Em verdades, palavras e cor


Tira Gentileza da camiseta

Vista quando sentir frio

Ponha Gentileza na cabeça

E seja gentil


Gentileza inda gera beleza

Pintada nas cores do Brasil

Gentileza não fique assim presa

Enfeitando os muros do Rio.


(Yussef Kalume)

Estou feliz, perdi o emprego

Estou feliz

Perdi o emprego

Me liberto do cabresto

Não sou capacho de patrão


De esculacho

Estou cheio

Trabalhei o ano inteiro

E não sobrou nenhum tostão


Não vou ficar no desespero

Se é por falta de dinheiro

Perder o emprego dá no mesmo meu irmão


Vou curtir férias por direito

Não que esteja satisfeito

Mas é melhor que ser escravo ou ser ladrão


Estou feliz

Perdi o emprego

Me liberto do cabresto

Não sou capacho de patrão


De esculacho

Estou cheio

Trabalhei o ano inteiro

E não sobrou nenhum tostão


E só aumenta o aluguel

Somam alguns zeros no papel

Os dez por cento que é do céu e a inflação


Eu vou viver um tanto duro

Investindo no futuro

Pelo menos me asseguro do caixão


O dinheiro me falta

As taxas são altas

E o governo me assalta...


(Yussef Kalume)